domingo, 17 de janeiro de 2010

Precisa de um empurrãozinho?

HÁ BLOGS QUE NÃO SÃO APENAS UM DIÁRIO, MAS FUNCIONAM COMO UMA TERAPIA PARA QUEM ESCREVE E PARA QUEM LÊ. COM A AJUDA DE OUTRAS PESSOAS SUA VIDA PODE VOLTAR A PEGAR - NO TRANCO

Texto: Mariana Delfini

Imagine um aperto bem fundo no peito, uma angústia que quase faz explodir, e então passe imediatamente para o grito, imagine o grito mais alto que se possa dar no mundo, para o mundo, de cima de uma montanha. Pronto, agora respire. Daqui a alguns dias, escale tudo de novo, encha o pulmão de ar e... você já sabe o que fazer. Quem não tem uma montanha sempre à mão ou não pretende subir e descer para sempre talvez devesse continuar lendo este texto. Indicamos uma forma mais silenciosa, elaborada e duradoura de desabafo: escrever.

Quem já fez um diário sabe que, depois de registrar os pensamentos confusos e os sentimentos inconfessáveis, a gente sente um alívio parecido com o do grito ou do choro. Mas, como escrever é um pouquinho mais sofisticado que simplesmente sair esperneando por aí, colocar toda a dor em palavras ultrapassa os benefícios do choramingar e funciona como uma terapia. “A escrita pode acelerar o tempo de superação ou de adaptação a uma tristeza”, explica James Pennebaker no livro Abra o Seu Coração – O Poder de Cura Através da Expressão das Emoções. O psicólogo estuda desde os anos 1990 melhoras na saúde de pacientes que escreveram sobre traumas por que passaram, e já chegou a resultados interessantes em diferentes experimentos. Por exemplo, ao analisar questionários de pessoas cujos cônjuges tinham morrido, concluiu que aquelas que falaram sobre a morte relatavam menos problemas de saúde. Em outro trabalho, levantou com testes de sangue a eficiência dos sistemas imunológicos de pessoas que escreveram sobre seus traumas por alguns dias, e constatou que ela era maior que a do grupo controle, que passou o mesmo período escrevendo sobre amenidades.

“Aparentemente, falar sobre um trauma é uma resposta humana natural. Quando essa resposta é bloqueada ou inibida, o resultado é estresse e doença”, escreve o psicólogo. “Quando usamos uma linguagem para relatar um fenômeno, isso altera a forma como esse fenômeno é representado e entendido em nossa mente.” Em outras palavras, é como se você estivesse contando para você mesmo uma história nova, mas que você conhecia há muito tempo. “Ao escrever, nós pensamos e fazemos associações com outras vivências. Descobrimos emoções encobertas por sentimentos que pareciam óbvios”, diz a psicóloga Cristiane Moreira.

Para todos

Por mais íntimo que seja esse processo de autoconhecimento, ele não se furtou de também entrar na onda de visibilidade dos últimos anos, junto com os reality shows, a explosão das webcams e das fotografias dos paparazzi espiando por detrás dos arbustos. Os blogs trocaram os cadeados e esconderijos dos diários e agendas adolescentes pela publicidade da internet e têm inclusive comentários dos leitores. Existem, claro, diversos tipos de blogs, e nem todos trazem detalhes sordidamente íntimos em letrinhas e emoticons – dos jornalísticos, associados por vezes a empresas de comunicação, aos diários pessoais virtuais, com os menores detalhes das atividades mais insignificantes de seu autor. Mas em alguns deles o grito é quase audível entre textos mais ou menos elaborados, com fundo sóbrio ou colorido. Não é que eles sejam escritos todos em maiúsculas, como pede a convenção do desespero e da raiva na internet, mas falam de dores profundas dos seus autores, como o dia a dia de um tratamento de saúde, a morte de alguém querido, as dificuldades para conviver com uma doença grave e assim por diante. Post após post, revelam angústias que até então pareciam indescritíveis. E por que gritar assim para tanta gente?

“Jogar um pouco daquilo para fora foi como uma catarse”, diz Luiz Fernando Vianna, que desde maio de 2007 escreve sobre seu filho Henrique no “A vida do meu filho” (http://a vidadomeufilho.blogspot.com). Um ano antes, sua ex-esposa se mudara para a Austrália com o novo marido, sem avisar Luiz Fernando e com uma autorização de levar Henrique cedida por uma desembargadora às pressas, em um sábado. “Três oceanos separam agora meu filho de mim. Mas, se ainda posso acreditar em alguma coisa, penso que há sentimentos que a distância, a ausência e a manipulação alheia não matam”, escreveu nas primeiras postagens. As ações judiciais e a luta para reaver o filho, que é autista, são narradas em detalhes no blog, entremeado por lembranças, reportagens sobre autismo e fotografias de Henrique. “Eu não sei escrever sem que alguém leia”, afirma Luiz Fernando, que foi acostumado pelo jornalismo a ter leitores. “Me ajuda saber que tem gente lendo, pelo menos meia dúzia de pessoas. Eles me dão um retorno”, diz. Para além da finalidade terapêutica, assume que tinha também objetivos bem práticos ao começar o blog: ecoar sua história nos ouvidos da Justiça e, com isso, pressionar os desembargadores para julgarem rápido os recursos que encaminhou. Um grito de desespero que, nesse caso, não funcionou: a decisão foi a favor da mãe.

O diálogo

A perspectiva de escrever para alguém e não para a folha em branco é uma das grandes mudanças na passagem do diário íntimo para o blog público. Por um lado, o olhar do outro ajuda na percepção da própria dor, quando os comentaristas enviam mensagens solidárias, dicas e até histórias semelhantes, que quebram a ilusão de que se está sofrendo sozinho. “Você não fica fechado em si mesmo, sofrendo e se achando o centro do mundo”, diz Luiz Fernando. Por outro lado, a expectativa da reação dos leitores provoca mudanças no próprio teor do desabafo. “Apesar de não ter uma presença que emite julgamento, o autor sabe que será lido por outras pessoas, e que isso acarreta tanto opiniões quanto possíveis reações contra ele. Essa consciência faz com que filtre o que escreve”, afirma Cristiane. Para Luiz Fernando, aconteceu de censurar-se às vezes, quando os textos estavam virulentos demais contra a mãe de Henrique. “Antes eu escrevia qualquer coisa que vinha no fígado, mas agora procuro evitar isso. Até porque a raiva perdeu um pouco a validade”, diz. Mas os comentários negativos que surgiram no começo, de leitores duvidando da história ou dizendo que ele estava sendo parcial (“É a minha versão que está ali, mas é o que eu considero a verdade”, ele diz), estão lá. Só não autorizou a publicação de um que ofendia a mãe do menino: “Ia virar uma execração em público, o que não era o caso”.

Os comentários são essenciais para a sobrevida do blog. Já que está aberta a possibilidade de troca, o blogueiro espera algum feedback sobre seus posts e as histórias que está contando. Ter leitores foi o que fez com que Cris Guerra estabelecesse um compromisso com a escrita e postasse com regularidade no “Para Francisco” (http://parafrancisco.blogspot. com). Lá, ela registra há mais de dois anos algumas lembranças do Gui, o pai do seu filho, que morreu pouco antes de ela dar à luz. Os textos sensíveis sobre Gui são direcionados ao filho, e alternam-se com novidades sobre ele, músicas e fotografias. Há também um post-réplica que provocou um turbilhão no blog, na Cris e nos leitores – tem hoje mais de 300 comentários. É a resposta dela a uma anônima que disse o seguinte: “Cris, acho que você mudou muito. Te acompanho desde o começo do blog. Me desculpa ser tão franca, mas acho que você ficou muito metida depois que ficou tão conhecida. Parece que você quer só aparecer e nem posta mais no Para Francisco, e quando posta, as mensagens nem nos comovem tanto quanto antes”.

“Nossa, eu fiquei p... demais”, ela diz, rindo. Mas deixou lá, publicado, e em vez de calar o grito retrucou de maneira ponderada. “A maneira como você vai lidar com os comentários é quase um exercício zen”, diz. “Eu acho que as pessoas se sentem no direito de falar coisas que eu não me sentiria no direito de falar.” Como se a conhecessem? “Sim. Eu me expus demais, não fiquei pensando nas consequências nem me arrependo. Mas existe uma diferença: uma coisa é eu me expor, outra é abrir minha vida para a possibilidade de alguém dar algum palpite. Existe uma linha tênue que separa as duas coisas.” Por onde passa essa fronteira?

A sintonia

Se não há sequer como definir essas regras de sociabilidade na “vida real”, no blog, com a proteção do anonimato, não dá para exigir uma observância a regras de etiqueta. Mas as aproximações, assim como as interferências agressivas, acontecem. Em alguns blogs, a identificação dos leitores com o autor arregimenta novas vozes. “É possível que os diaristas virtuais busquem no outro um espelho”, escreve a jornalista Denise Schittine em Blog: Comunicação e Escrita Íntima na Internet. O blog cria ligações e acaba formando pequenas redes fundadas em torno de afinidades. São de comunidades de interesses específicos, unidas tanto pelos comentários quanto pelos links que levam a outros blogs e sites de conteúdo semelhante. Os leitores do “Diário de uma fóbica” (http://diariodeumafobica. blogspot.com) são pessoas que também sofrem de transtornos de ansiedade e até trocaram contatos de MSN com a autora, que se apresenta como “Menina”. No “Anorexia: diário da minha outra personalidade” (http://anorexica.zip.net/index.html), não é raro encontrar comentários como o de Jéssica: “Pelos posts seus que li, era como se fosse eu mesma falando comigo”. No “Diá rio de uma domadora do câncer” (http://reghynynha. blogspot.com), a história de Regina Oliveira contra um câncer na glândula suprarrenal ganhou “colaboradores” esparsos: leitores que também passam por quimioterapia e acrescentam novas informações ou depoimentos relacionados a alguns posts.

O suspiro

A polifonia da comunidade que se forma diminui um pouco a solidão de que Regininha fala no primeiro post. “Quem nunca teve câncer não faz ideia do que significa ouvir do médico que tudo está bem. Não sabe o frio de medo que passa pelo corpo cada vez que se abre o resultado de um exame de controle”, diz. Depois de dez meses de tratamento, ela está curada, e mantém o blog atualizado com notícias por causa dos leitores. “Eles me cobram quando fico muito tempo sem escrever, e eu quero ajudá-los.”

Os blogs do Luiz Fernando e da Cris Guerra, que foram catarse, desabafo e terapia também para eles, seguem com posts mais “frios”, mas seguem em frente, atualizados. Vão ainda ecoar como um registro de tanta coisa que passou. “Com a publicação do livro, que se originou do blog, meu luto se encerrou, minha vida continua. Mas o blog é um registro daquela urgência que eu tinha, e vai continuar lá”, diz Cris. Diferentemente do Francisco, que vai mesmo conhecer o blog criado para ele, o Henrique não vai conseguir ler sobre sua vida. Mas sua história vai continuar na rede. “O blog é uma maneira de eu deixar um legado para ele, e também de nos comunicarmos. Como eu só o vejo uma vez por semana pelo Skype e ele só fala algumas coisinhas, eu uso o blog para me comunicar de uma maneira indireta com ele. É uma espécie de diálogo entre nós dois.”

Retirado da Revista Vida Simples: dezembro 2009/edição 86, páginas 42 - 47