sábado, 19 de dezembro de 2009

O LUGAR ESCURO

Trecho do Livro: "O Lugar Escuro - Uma História de Senilidade e Loucura"
Autora: Heloisa Seixas
Editora: Objetiva
Páginas: 103 - 105
"Agora, seus dias têm um ciclo, que é mais ou menos assim: acorda calma, até mesmo sorrindo. assim que é tirada da cama, fica furiosa, grita, chora muito. Mas logo em seguida torna a se acalmar. Toma café com grande apetite e quase sempre mergulha numa espécie de torpor, que se estende até certa hora da tarde. nesse meio-tempo, é levada a passear na cadeira de rodas, pega sol, toma banho. Enquanto faz tudo isso - sempre com ajuda de outras pessoas, claro -, permanece um pouco alheia ao mundo à sua volta, e só às vezes fica furiosa por estar sendo incomodada. Almoça bem, depois é recolocada na cama para descansar, ou fica sentada na poltrona do quarto, diante de uma televisão ligada, à qual não presta muita atenção.
E então, bem no meio da tarde, começa o pesadelo.
São os números. Minha mãe se põe a contar. Conta, conta e conta, sempre colocando os números na ordem certa e só muito raramente se confundindo. Conta, e não somente de um a dez, mas indo até números altos, até mais de cem. Conta, pára um pouco, recomeça a contar. mantém na contagem, um estado de permanete ansiedade, aflição, sofrimento. E, entre uma série e outra, nos rápidos intervalos, nos olha com seus olhos súplices e pede ajuda.
- Trinta e um, trina e dois, trinta e três... por favor, pelo amor de Deus! Trinta e quatro, trinta e cinco... O que é que eu vou fazer?
Pergunto a ela por que está contando. Ela me olha, o rosto transtornado. Às vezes, parece perceber o aburdo da situação, murmura alguma coisa, sorri. Em outras ocasiões, recebe minha pergunta como se fosse um escárnio.
- Você ainda pergunta?! Treza, quatorze, quinze... E agora, como é que vai ser? Como é que nós vamos fazer? Dezesseis, dezessete...
Nunca pára de contar. Vê-la assim me faz pensar em Arthur Bispo do Rosário, em seus estandartes e assemblages pefeitamente ordenados, nos objetos enfileirados, como se ele quisesse pôr um perfeito sentido em seu mundo interno caótico.
Não sei a que quer se agarrar minha mãe quando começa a contar. Sei que conta como se disso dependesse sua vida, como se precisasse de ordenação dos algarismos para sobreviver. E, quando está contando, tenta se erguer da cadeira num vai-e-vem permanente, angustioso, permeado de lamúria. Inclina-se para frente e para trás, as mãos fincadas nos braços da poltrona, o rosto afogueado pelo esforço, os olhos muito abertos. Transpira.
Sempre, que chego em casa, no fim da tarde, eu me deparo com isso. Minha mãe e seus números, nessa contagem bizarra e desesperada - sem fim.
Só pára quando chega o jantar, e às vezes nem isso. Ainda depois de ser colocada na cama, continua a se agitar por um tempo, sempre pedindo ajuda, implorando por alguma coisa, fazendo queixas. Aos poucos, muito aos poucos, torna a mergulhar no torpor da manhã. Até que adormece. Para no dia seguinte começar tudo de novo."

Nenhum comentário:

Postar um comentário